"A moda é uma arte?" - Esta é uma das perguntas que a filosofa e socióloga Gilda de Mello e Souza faz em seu livro O Espírito das Roupas (obra que deu inspiração ao meu blog). Através de uma série de argumentos e análises, a autora acaba defendendo, sim, a moda como arte:
[...] para que a vestimenta exista como arte é necessário que entre ela e a pessoa humana se estabeleça aquele elo de identidade e concordância que é a essência da elegância. Recompondo-se a cada momento, jogando com o imprevisto, dependendo do gesto, é a moda a mais viva, a mais humana das artes. (p. 41)
Comparando quadro e vestimenta, Gilda defende que o primeiro, emoldurado, faz-se exterior às nossas ações, enquanto as roupas só se completam com os corpos humanos, com as nossas alterações e interferências - não há moldura que nos impeça! Gilda ainda afirma: "Como qualquer artista o criador de modas inscreve-se dentro do mundo das Formas. E, portanto, dentro da Arte".
Quando compara Moda e Arquitetura, a autora estabelece a seguinte relação:
O advento da era industrial não destruirá a correspondência [entre moda e arquitetura] e o século XIX irá explorar a forma cilíndrica. Os temas invariáveis do industrialismo, abóbodas, túneis, reservatórios de gás, chaminés de fábricas, imprimem-se no subconsciente e o homem também se torna cilíndrico, com suas calças, cartola e sobrecasaca. (p. 34)
A moda também pode e interferiu no trabalho do pintor, como sugeriu Gilda: se em outras épocas o corpo nu fora objeto de inspiração, em outros momentos o "corpo artificial", coberto por vestimentas foi o que interessou tal criador.
Baile de Núpcias do Duque de Joyeuse (1581)
Cunnington, estudioso da sociedade inglesa, afirma que a moda está intimamente ligada aos princípios morais e ressalta a interferência da religião nos costumes. Durante muitos anos, as curvas e contornos do corpo foram "camuflados" por panos e mais panos: enchimentos, mangas bufantes, entre outros artifícios. A diferenciação entre as vestimentas masculinas e femininas só acontece por volta do século XIV, e Cunnington sugere o motivo para tal mudança: relaxamento do domínio da Igreja - tão presente durante a Idade Média - e libertação das mulheres "que, começando a ter direito na escolha do companheiro, interessam-se cada vez mais pelos elementos de atração sexual". (p. 45)
Por fim, a autora estabelece uma relação bastante interessante entre o século XIX e novo jeito de se vestir - um jeito mais solto, que permite movimentos.
O século XIX, trazendo as profissões liberais, a democracia, a emancipação das mulheres e a difusão dos esportes, completará as metamorfoses sociais que fizeram o traje hirto dos séculos anteriores desabrochar na estrutura movediça de hoje em dia. (p.50)
Antes de chegar aí, Gilda comenta sobre a importância da vestimenta na diferenciação social. A roupa incômoda, que impedia o movimentar dos membros superiores, por exemplo, exprimia uma prerrogativa de classe e uma rica ornamentação.
Algumas marcas da distinção social relacionadas aos tipos de indumentária:
No édito de Henrique II, em 1549, vemos que "apenas os príncipes e as princesas podem vestir-se de carmesim; os gentis-homens e suas esposas só tem o direito de utilizar essa cor nas peças mais escondidas; às mulheres da classe média só é permitido o uso de veludo nas costas ou nas mangas; aos maridos, proíbe-se o seu emprego nas vestes superiores, a não ser que as inferiores sejam de pano; às pessoas que se dedicam aos ofícios e aos habitantes do campo, a seda é interdita, mesmo como acessório". (p.47)
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SOUZA, Gilda de Mello e. O Espírito das Roupas: A moda no século dezenove. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.